ORDEM

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ORD

A virtude da ordem 

Que queres que eu faça?

Para um cristão, que vive de fé e de amor, a vida está em ordem quando se encontra em sintonia com a Vontade de Deus. Se não está em harmonia com o que Deus quer, com o que Deus nos pede, a vida caminha fora dos trilhos, é uma “desordem”. Por isso, com muita freqüência deveria sair do nosso coração a pergunta de São Paulo: «Senhor, que queres que eu faça?» (Atos, 9,6).

Há muitas maneiras de formular essa pergunta. Talvez a mais básica seja a seguinte: «Na fase atual da minha vida, o que é que Deus quer que eu coloque em primeiro lugar, que ocupações ou deveres deveria organizar e garantir melhor, porque precisam ter prioridade sobre as outras coisas?

Será a dedicação à família? Ou o aprofundamento no estudo profissional? Ou o tempo necessário para a formação espiritual as obras de serviço ao próximo…?».

É um assunto para meditar sinceramente, com calma, até chegarmos a conclusões bem definidas. Quando, chegando a conclusões, já surge a luz, então é muito importante que ela ilumine de fato “cada um” dos nossos dias e que, portanto, passemos a perguntar-nos: «Hoje, que deveres ou tarefas deveriam ser prioritários para mim, quais são os que Deus me pede que coloque em primeiro lugar? ».

Se fôssemos superficiais, seria fácil chegar à noite e tranqüilizar a consciência respondendo: «Tudo está em ordem. Não fiz outra coisa senão trabalhar” (seja na fábrica ou no escritório, no lar ou na escola, ou onde quer que cumpramos a obrigação cotidiana)» No entanto, aos olhos de Deus, as coisas podem ser completamente diferentes.

O Senhor, certamente, nunca nos vai sugerir que abandonemos ou descuidemos as obrigações básicas diárias. Mas é bem possível que, se soubermos escutar a sua voz no fundo da consciência, percebamos que nos diz:

«Hoje, o que é mesmo prioritário para você é dar o passo decisivo para se reconciliar com seu marido, e acabar de vez com esse mutismo causado pelo seu orgulho ferido».

«Hoje, não deixe de procurar, lá no escritório, um momento propício para conversar com esse colega que anda cada vez mais desorientado e precisa de uma palavra amiga que o encaminhe»

«Hoje, aproveite o final do expediente para consultar com um sacerdote esse problema de consciência que o atormenta, e cuja resolução já adiou demais».

«Hoje, comece a pôr em prática o propósito de se levantar antes, de rezar a oração da manhã com pausa e de ler umas palavras do Evangelho, que sejam luz para o seu coração ao longo do dia»…

Saber parar, meditar e orar É lógico que essa voz, essas “palavras” do Senhor, só poderão ser bem ouvidas se soubermos recolher-nos em silêncio na presença de Deus para pensar sinceramente na nossa vida, num clima de diálogo com Deus.

Na realidade, todos os cristãos deveríamos estabelecer e manter – e defender como algo de sagrado – pelo menos dez ou quinze minutos diários dedicados à meditação e ao exame da vida na presença de Deus: de manhã, antes de iniciar as atividades; ou pouco antes de nos recolhermos para descansar; ou aproveitando a possibilidade de visitar uma igreja numa hora tranqüila, quando o silêncio do templo convida à intimidade com Deus…

Porque é nesses momentos que a alma, com a graça divina, se torna transparente, se liberta da terrível força centrífuga do ativismo, e consegue voltar para o seu centro, esse “centro da alma” de que falam os santos, onde ela se encontra a sós com Deus. Para quem quer escutá-Lo, aí Deus sempre fala. E essa voz de Deus, honestamente escutada, é a que nos esclarece quais são as prioridades e nos ajuda a hierarquizar, pela ordem de importância, os deveres a cumprir.

Assim, estamos em condições de escolher o que é bom e grato a Deus. É importante, neste ponto, perceber que o fato de um dever ser prioritário não significa, via de regra, que seja preciso dedicar-lhe a maior quantidade de tempo. Há duas maneiras de dar prioridade a alguma obrigação, sem necessidade de prejudicar o tempo exigido pelas outras ocupações que tomam a maior parte do dia:

1) em primeiro lugar, vive-se uma tarefa como prioritária quando se dá importância primária à “qualidade” com que se realiza. Assim, a um homem que deve trabalhar por longas horas para sustentar a família, Deus muitas vezes lhe sugerirá:no dia de hoje, é prioritário dar ouvidos às preocupações da sua esposa, dedicar uma palavra de estímulo àquele filho.

Isto não significa que Ele nos peça um tempo de que não dispomos. Pede-nos, sim, que, dentro do pouco tempo disponível, demos maior qualidade – qualidade de carinho, de interesse, de afabilidade – ao relacionamento com os da nossa casa.

E isto é sempre possível.

2) Há uma segunda maneira de dar prioridade a um dever: é a prioridade “cronológica”. Não a que consiste – repitamos de novo – em lhe dedicar longo tempo. Mas a que consiste em fazer o que é mais importante “quanto antes”, sem atrasos desnecessários.

Pensemos, em relação a isso, na facilidade com que empurramos para depois deveres que certamente julgamos (mentalmente) primordiais. Temos consciência de que alguma coisa é importante e não pode ser largada; mas iludimo-nos, dizendo: “Mais tarde”; ou então: “Logo que me sobrar um pouco de tempo”. Infelizmente, esse tipo de reações é freqüente quando se trata de deveres para com Deus: missa dominical, oração, etc., ou de deveres relacionados com o serviço do próximo.

Seria lamentável que reservássemos para esses deveres, que consideramos importantes

– e que são ressonâncias de apelos divinos

–, somente as sobras do tempo.

No entanto, é isto o que fazemos com freqüência: deixar o refugo do nosso tempo para as exigências do amor de Deus e do amor ao próximo. Infelizmente, onde não há amor já está instalada a principal «desordem».

A ordem nos nossos horários Estabelecer prioridades é, certamente, uma das formas mais nobres da virtude da ordem: é colocar a ordem na mente e no coração.

Nos parágrafos anteriores, examinamos essa necessidade de hierarquizar conscienciosamente o conjunto dos nossos deveres e tarefas, abrindo espaços para todos e garantindo-lhes as precedências convenientes. Mas, para além dessa ordenada hierarquia de preferências, o cristão – e, em geral, todo homem ou mulher responsável –deve cuidar da prática da ordem no seu sentido mais simples e corriqueiro: a organização das atividades dentro dos horários de cada dia, a adequada planificação do aproveitamento diário do tempo.

Falar nessas palavras – organização, planificação – evoca de imediato, nos tempos que correm, a frieza empresarial da produtividade e da eficiência. Parecem soluções muito boas para a indústria e o comércio, e muito ruins para o coração.

Será possível falar-se em planejamento e sujeição a um horário quando se trata de coisas de amor?

Porque, no fundo, é de coisas de amor que estamos falando. Ter um horário fixo para rezar ou para ler um livro de espiritualidade, reservar tempos e horários certos para a confissão freqüente, a Missa, a comunhão … tudo isto não soa a constrangimento, formalismo e abafamento da espontaneidade do espírito?

Muitos pensam assim, e isso acontece porque não compreendem o verdadeiro sentido da virtude da ordem, uma virtude que precisa ser resgatada dos preconceitos que a desmerecem. Se não a reabilitarmos no nosso mundo de valores, veremos como a espontaneidade do amor e dos bons propósitos – que aparentemente é tão bonita e autêntica – se desvanecerá em ilusões e omissões. Vejamos um pouco mais de perto este tema.

Todos temos a experiência de que existe uma ordem que não é boa e que se poderia chamar «defensiva» ou «bitolada»: é a da pessoa que organiza muito bem os seus horários, mas não tolera que nada nem ninguém interfira neles, e se alguém tenta, cai sobre ela a ira do interrompido. Isso não passa da carapaça com que o egoísta se protege. Bem sabemos que essa ordem pode tornar-se doentia e atingir requintes de neurose, de mania.

Talvez já tenhamos conhecido pessoas que ficavam transtornadas porque alguém – esposa, filho, empregada – tinha tido a ousadia de deslocar em poucos centímetros a posição exata que um livro devia ocupar na mesa do escritório. Da mesma forma que não faltam os que dramatizam qualquer interferência que lhes altere o horário de sono, ou o fim de semana cuidadosamente planejado. Isto não é virtude, é doença espiritual e, talvez, psíquica. Assim como também não é virtude a ordem dos escravos da eficiência, que sobre o altar da “produtividade” ou do “sucesso” profissional sacrificam Deus, a saúde, a família e as amizades.

A virtude da ordem, para o cristão, é outra coisa: é uma maneira de praticar melhor o amor. Se nos perguntássemos pelos traços mais essenciais do amor, com certeza todos nós coincidiríamos em dois deles: – primeiro: amar é querer bem, o que significa, por um lado, querer mesmo, querer de verdade; e, por outro, querer fazer o bem e tornar feliz – ou agradar – a pessoa amada; – segundo: amar é dar, ou melhor, dar-se.

Não é a procura interesseira de si mesmo, através do prazer, das satisfações ou das compensações obtidas dos outros, mas é doação. Procuremos aplicar estas idéias, simples e transparentes, a dois exemplos vivos, que ilustram o que é a ordem nascida do amor. Um homem, por exemplo, está habituado a viver à margem do lar. Mulher e filhos vêem chegar todas as noites um fugaz visitante cansado e mal-humorado, que só deseja não ser incomodado. Chega tarde, não por necessidade, mas porque se entretém desnecessariamente com o serviço, ou prolonga o expediente em conversas de bar com os colegas. Um belo dia sente a voz da consciência. Compreende que não está dando atenção suficiente aos seus. E resolve fazer uma pequena modificação importante: encerrar o trabalho na hora certa e chegar a casa, no máximo, até tal hora, bem definida, para assim dedicar-se mais à família.

Faz o propósito e o cumpre.

Pois bem, este ato de ordem é um ato de amor: porque quer sinceramente o bem dos outros, e concretiza o modo de dar-se a si mesmo. Vejamos um segundo exemplo: um estudante (um desses católicos “comuns”, que vai à Missa “quando dá”) entende num dado momento a importância da conversa com Deus, da oração. Como é possível – diz de si para si – amar a Deus e não falar com Ele, não ter momentos de intimidade.

Antes, pensava vagamente que a oração era uma coisa boa, e estava disposto a fazê-la – como tantos outros – “quando tiver vontade”, “quando sentir” … Agora, quer mesmo fazer oração, e reserva para isso um tempo diário, num horário fixo e determinado. Justamente porque “quer mesmo”, define um horário que garanta esse seu querer.

Com isto, já está começando a amar, e o seu amor será mais completo quando se determinar a dar a Deus todos os dias, sem falta, esse pedaço do seu tempo – uns minutos de oração –, sem ficar calculando se gosta ou tem vontade, pensando só em agradar a Deus. Convençamo-nos de que a ordem e a disciplina que a ordem estabelece – quando brotam da meditação, da oração – não asfixiam o idealismo, a paixão nobre ou o amor.

Pelo contrário, canalizam-nos e os efetivam. Naturalmente, desde que a paixão nobre, o amor e o ideal existam e sejam uma força poderosa da alma. A ordem está a serviço dessa força, não a substitui. Como são traiçoeiras as faltas de ordem “inocentes”, essas “preguicinhas” que tanto nos fazem sorrir. Parecem coisa de nada, e podem vir a ser coisa de muito.

Um simples atraso, um descuido, um adiamento escorado numa boa desculpa… são outros tantos modos de fazer murchar as melhores resoluções e os mais belos ideais. Basta uma “pequena preguiça” na hora de levantar, para que a oração ou a comunhão seja abandonada, ou para que o trabalho seja enfrentado atabalhoadamente e sem garra. Façamos um horário, um “plano de vida”, bem meditado e bem distribuído– melhor se for por escrito –, que crie canais efetivos para todos os nossos desejos de fazer as coisas bem e de fazer o bem; vivamos fielmente esse plano, e então entenderemos por experiência o sentido destas palavras de São Josemaria Escrivá:

“Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar maior glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço” (Caminho, n. 80).